Luto, tristezas e uma certa paz - 20
Dei-me um pensamento a teu respeito, mãe. Como uma tarde que presenteia a sala com sombras silenciosas dei-me este pensamento. E quando me dei foi com surpresa que me vi com o pensamento nos olhos, na boca, na alma sem saber o que fazer. Quase sem voz é este pensamento, sem muitas voltas, fios de algodão em trama artesanal, um pensamento diluído em ondas azuis no vazio da tua casa. Pensei em tuas mãos, veja só estes sentires do luto, pensei em tuas mãos, e ainda estão aqui no meu pensamento como música que canta o amor, tuas mãos, tuas mãos refazendo a planta numa nova muda, adensando sobre as raízes a firmeza de um punhado úmido de terra.  

Luto, tristezas e uma certa paz - 19

Quando chegamos ao lugarejo onde ela seria sepultada bateram a porta do carro e meu dedo mínimo, exatamente na unha, foi amassado. Imediatamente o dedo inchou e manchou-se de púrpura, de púrpura dor por debaixo da pele, que não se rompeu. Era o destino de dores que se davam as mãos. Deram-me gelo, abraços, palavras, cantos, condolências, rezas, e latejavam, sem descanso, as dores. Meu Deus! Os dias passaram, dois meses e meio e a pequena mancha ainda desenha as cores do adeus na unha.  Não dói... mas, ah!, se houvesse um descanso, uma possibilidade de alívio... Não há, eu sei, só haverá talvez um arranjo ao modo de arte em que se pinta a vida de amor, amor que dá sentido de poesia a esse fosso imenso que nos separa com silêncios.

Luto, tristezas e uma certa paz - 18

Os dias seguem escrevendo aqui, ali, “esquece”, “esquece”, “esquece”. Eles oferecem-me em cada passo, em cada hora, o convencimento de que tudo segue como antes. Tudo vai se sobrepondo ao pequeno acontecimento diluído na história, a morte, aquela morte, a da minha mãe. No entanto, o entorpecimento que a rotina oferece se vai no mesmo instante que o tomo; e então sinto que a morte me talha em cortes finíssimos na alma uma estranha sensação. Estou tentando me acostumar a essa nova vida. (Não é preciso dizer aqui o que digo, todos vivem seus lutos, e o que aqui faço, portanto, é apenas mais uma forma de prestar homenagens a ela).

Luto, tristezas e uma certa paz - 17

Chamei por você, chamei baixinho, naquele jardim dos fundos, naquela sua pérgula. Chamei como quando se reza a um santo. Chamei cantando as palavras em jaculatórias com longas pausas silenciosas. Ora sussurrava Mãe, ora Maria. E pensava olhando suas plantas: você sempre me respondia, nunca deixava de me responder, com um apertar dos olhos, um movimento dos lábios mesmo que sem palavras, uma respiração mais funda; os técnicos de enfermagem ficavam admirados com sua sempre prontidão em me responder. Foi assim por seis anos. Você está a me responder agora minha mãe, eu sei que sim, imagine se não!, apenas ainda não descobri em que flor, em que o vento, em que balanço de folha. Mas não lhe peço nada, permito-me apenas chamá-la. Doce me dou a sentir o sabor das palavras Maria e Mãe. A resposta será sempre amor, mesmo e apesar das invisibilidades.

Luto, tristezas e uma certa paz - 16

Venho brincando com barcos. Pego uma foto disponível na internet e corto, recorto, altero cores, formas, aumento, diminuo. Eles me levam. Acho que é isso. Os mitos falam dos barcos que atravessam para lá. Não sei. Gosto deles. Hoje fiz um barco para a Maria. Dois meses. Hoje, 04 de janeiro.

Luto, tristezas e uma certa paz - 15

Há aqui, bem aqui, uma fresta, uma fenda, um abismo neste fim de tarde do primeiro dia do ano. Um vão que pede uma ponte. Lanço apenas o olhar de saudades para o horizonte distante. O amor se prolonga no luto, é isso. Ama-se esticando o olhar sobre a fenda.